1) 12 de outubro de 2004 – 2h da manhã. O Amor.
Estava sonhando com um avião que caia sem controle. Eu era um mero expectador de uma tragédia. Este foi um sonho recorrente que sempre tive quando trabalhava como executivo de vendas. No exato momento em que a merda do avião ia se espatifar no chão, acordo assustado com o telefone tocando sobre minha cabeça. Sem saber onde eu estava, procurei pelo aparelho e bati com a cabeça em uma prateleira de madeira que ficava na cabeceira da cama e onde o telefone sem fio ficava hospedado. “Deus meu, a essa hora? Deve ser aquele velho maluco” – pensei, isso foi depois de ter recebido ligações de um mesmo senhor várias vezes nesse horário por semanas.
– Alo?- perguntei eu, pronto para xingar, e esperando ouvir a voz do velho senhor.
– César, sou eu.
– Eu quem? – Perguntei.
– Seu irmão Mauricio! – respondeu ele com a voz grave.
– Cara, o que houve? A mãe tá bem? – perguntei meio dormindo, meio acordado.
– Não, foi o Marcelinho, ele não tá bem, é grave. Coração. Ele está no Hospital Brasil em Santo André. Vem já pra cá.
– O que houve? O que ele tem? Falei com ele ontem mesmo?.
Depois desse rápido diálogo, não obtive reposta à minha pergunta, pois a linha havia caído, ou minha mente bloqueou as palavras do meu irmão. Minha mulher a essa hora já estava acordada e um pouco assustada:
– O que houve? O que houve, Cé?
Levantei atordoado sem saber o que fazer, o que vestir, o que pensar. Rapidamente nos vestimos com qualquer roupa. Saímos correndo feito loucos.
“- Onde é esse maldito hospital?” – pensei descontrolado.
– Eu sempre falei pra ele, c&%$#@aleo mano, cuida da saúde. Investigue mais profundamente seus desmaios.
– Calma Cé, calma! falava minha esposa tentando me fazer entrar no controle novamente.
– A hora que “eu chegar” lá no hospital vou “comer o toco dele. Inconsequente”.
-Vou tirar ele de lá e vou transferir para o INCOR.
Eram frases desconexas. Com esses pensamentos, me perdi no caminho, não achava o maldito hospital. Rodei perdido pelas ruas vazias de Santo Andre por uns 10 minutos talvez. Aquele era um pesadelo sem fim e que só podia estar continuando, não era possível!! Tudo bem, eu acordaria daqui a pouco suando como sempre.
-É ali Cé, vai, vai, chegamos! – minha esposa mantinha o controle. Parei o carro tremendo de ódio daquela situação. Queria pegar meu irmão e tirá-lo dali. Levá-lo para um lugar onde seria bem tratado.
Descemos do carro e entramos pela porta principal do hospital. Uma enfermeira do atendimento olhou diretamente para mim e não disse nada. Foi um olhar de dor, compaixão e pena, pois ela sabia o que nos esperava naquele momento e para o resto de nossas vidas. Naquele momento percebi que tudo havia desmoronado e que não havia nada que eu pudesse fazer a não ser me encostar na parede e chorar pelo intenso amor fraternal que eu havia acabado de perder.
-Precisaria de um coração novo, nem Jesus aqui resolveria! – Disse o médico para mim friamente.
Na hora pensei “O amor de Cristo faz qualquer coisa doutor, até colar corações despedaçados”
Cinco minutos depois, ou meia hora, não sei bem, vejo minha esposa voltando de uma sala lá de dentro me dizendo: -Ele está bem agora e “dorme” feito um anjo. Saiba que será um tempo de dor, mas que o amor superará tudo.
2) 12 de outubro de 2004 – 5h da manhã. Um segundo depois. A Fé.
De repente uma voz ecoou me contando essa historia:
-Oi tudo bem?
-Tudo. Onde eu estou, que lugar é esse?
-Calma, não se levante! Você precisa descansar.
-Não estou cansado. Cade meu irmão? Quem é você?
-Sou um doutor aqui!
-Doutor, já estou bem melhor, posso ir embora?
-Calma filho, ainda não. Antes tenho algumas perguntas para te fazer.
– Eles já devem ter resolvido toda a papelada dos exames. Minha esposa e meus irmãos estão lá vendo isso.
-Estão sim, pode ficar tranquilo. Como estão as coisas? Sua vida?
-Eu estou um pouco preocupado, ando estressado, sabe doutor. Quero que as coisas deem certo, estou formando família. Mas tenho fé que tudo dará certo. Sou guitarrista sabia? Vida louca. Meu coração não aguentou.
-Sim, meu filho eu sabia e acredite, tudo vai dar certo. A fé já é um grande passo para que tudo dê certo na vida da gente. Seu coração agora está ótimo.
-E sua mãe, conversou com ela ultimamente?
-Ahh doutor, ela é fogo. Faz um monte de comida boa, eu adoro, como todas as “tranqueiras” que ela faz. Estive recentemente com ela, comendo os seus famosos quitutes. Ela é orgulhosa da gente.
-Eu sei. Ela é fogo mesmo. Sempre fez de tudo para dar cultura e estudos para vocês.
-E de onde você a conhece doutor?
-A conheço faz tempo. Ela vive visitando os médicos. Mas tem uma saúde de ferro. Vai viver muito ainda. Costumávamos falar muito sobre isso. Falar sobre os filhos, os sonhos dela. É uma mulher de força. Sonhadora.
-Eu conheço o senhor de algum lugar doutor? O senhor não me é estranho não. Me diz coisas familiares. E esses óculos.
-Filho, vou dizer uma coisa para você, nós médicos sabemos de muita coisa. Mais do que você imagina. E agora como você está meu filho? Mantendo sua fé, você vai longe, meu filho.
-Doutor, que história é essa de filho? Filho… O senhor fala como um padre…
-Filho, preste atenção! Agora é a hora de você manter sua fé. Tudo mudou. Por isso fiz questão de vir até aqui te receber e atender. Você sempre foi um filho amoroso. As coisas nem sempre foram fáceis para você e seu irmão. Agora ele seguirá o caminho dele. Um caminho de sucesso. Seus irmãos agora estão em outra missão, eles serão pais. Sinto saudade da sua mãe também. Uma grande mulher. Uma guerreira. Sempre amei vocês e os protegi e agora estou aqui para receber você, filho.
-Filho, de novo? Como assim? Que lugar é esse? Eu te conheço…?
-Filho, preste atenção. Estou aqui para te receber.
-Pai, é você?
-Sim meu amado filho! Quanta saudades… me de aqui um abraço…
3) 12 de outubro de 2015 2h da tarde. 11 anos depois do dia 12 de outubro de 2004 – A Esperança:
Gabriel 9 anos
– Gabriel, hoje você aprende a andar de bicicleta!
– Sério pai? Não sei não… eu me desequilibro fácil.
– Eu tenho esperança que hoje será o grande dia. Agora vai filho. Sente aqui na bicicleta. Mantenha a calma e concentre-se no caminho e não pare de pedalar.
– Pai, não quero que você se canse. Me preocupo com suas articulações.
– Ahaha Cala boca menino, e continue pedalando, não pare. É a velocidade constante que te mantem equilibrado, NÃO PARE!!
– Pai, cuidado com suas lesões! Olha está vendo? você já está cansado. Droga…
– Filho, preste atenção: Não pare de pedalar em hipótese alguma. Vá sempre em frente. Seu pai não estará aqui eternamente nesta terra para segurar seu selim, entendeu? Agora, vamos de novo.
– Pai, tenho esperança que estará aqui comigo para sempre. Não é você mesmo que diz que viverá até os 100 anos?
– Sim, sim, eu vou, agora, concentre-se e continue pedalando, vai, vai, pedale forte que estou ao seu lado, mantenha o foco, pedale, estou ao seu lado, vai, vai, você consegue filho, você consegue, sinta, você está no controle, andando sozinho, percebeu??
– Pai, eu consegui…eeeeeeeee
Vinicius 4 anos
– Pai?
– O que meu filho?
– Para onde você vai depois que morrer? Você vai nascer de novo como criança?
-Não sei filho? Porque?
-Ahh Isso seria muito legal. Eu cuidaria de você quando ficasse doente. Daria xarope para a tosse e faria inalação. Pegaria você no colinho e daria a chupeta para você quando chorasse. Levaria você para a escola de inglês e faria cocegas e contaria historinha antes de dormir.
-Mas o papai vai viver até os 100 anos, lembra?
-Ah, então até lá espero que você é que cuide de mim tá bom?
– Claro filho, eu te amo e sempre vou cuidar de ti.
– Também te amo papai, agora escove meus dentes, tá?
* César Manieri (54), é engenheiro, músico, empresário, professor e especialista em educação matemática, diretor da escola Integro. Escreve em seu blog “Na metade do Caminho” e autor de textos e pensamentos sobre conservadorismo, religião, política, educação e auto conhecimento.