Na madrugada do dia 12 de outubro de 2003 eu dormia profundamente quando o telefone tocou no meio da madrugada. Acordei de sobressalto. Confuso, alcancei o aparelho que ficava logo acima da minha cabeça em uma prateleira sobre a cabeceira da cama.
-Alô…quem é? – Perguntei com aquela voz grave e gutural de quando a gente acorda. A voz do outro lado séria e ao mesmo tempo desesperada me disse: -Sou eu, seu irmão, Maurício! – eu estava tentando organizar as ideias. Por que meu irmão me ligaria naquela hora? Deveria ser uma notícia ruim. A pior de todas. -Aconteceu alguma coisa com a mamãe? Fala!!!! disse eu em um tom mais alto. Nessa hora minha esposa acordou assustada. – Não! – disse ele com a voz embargada, – o Marcelinho está internado, teve uma parada cardíaca e está sofrendo uma cirurgia, vem pra cá agora, estamos no hospital Brasil em Santo André. Desliguei o telefone de imediato, corremos para pegar o carro para ir correndo ao hospital.
Em desespero, sai em desabalada carreira, sem pensar, em alta velocidade. Não sabia por que estava daquele jeito. Minha esposa pedia calma. Sem saber o que fazia, entrei em uma espiral de loucura. Tomei o rumo errado. Queria ver meu irmão caçula, abraçá-lo e dizer o quanto eu o amava. Depois de andar em ziguezague pelas ruas de Santo André, chegamos ao hospital. Corri para a recepção para pedir informações sobre ele. Neste momento olhei bem nos olhos da atendente e ela não precisou dizer nada. Foram alguns segundos que se tornaram horas. Aquele olhar de profunda consternação e dor que ela sentia invadiu meu coração. Ela já sabia o que eu estava prevendo. Com a voz baixa ela me disse: – Ele se foi!
Corri para uma parede próxima, me encostei e fui descendo até o chão aos prantos e desolado. Naquela hora, um filme passou diante dos meus olhos. Todas as nossas aventuras infantis.
Apesar de ter sido o irmão mais velho, sempre brincava com ele.
Lembrei das brincadeiras com seus bonecos do Falcon, assistíamos Chaves e Speed Racer juntos. Uma vez fomos acampar no litoral norte. Eu e ele. Eu tinha uma barraca de Camping enorme, e um Fiat 147 1983 à álcool. Colocamos a barraca no porta malas e sem qualquer planejamento decente, colocamos o pé na estrada. Após pneus furados e uma noite extremamente chuvosa que molhou todas as nossas coisas, passamos a semana mais maravilhosa de nossas vidas. Ele era assim. Topava qualquer parada. Estudávamos música juntos e logo percebi seu talento ímpar como multi-instrumentista. Para ele tudo era fácil. Tocava bateria, baixo, guitarra, piano, sax, violino, tudo.
Lembrei quando ele entrou em um banda que eu tinha e dividimos o palco várias vezes. Fizemos viagens épicas por algumas cidades e estados. Deus me abençoou. Tenho tudo isso registrado em fotos e áudios que meu pai carinhosamente fez.
Quando ele saiu de casa para montar sua escola de música, nos afastamos um pouco e uma vez brigamos sério. Eu sempre fui muito medroso e queria ter uma vida segura, mas ele não, ele era destemido, uma característica dos caçulas. Corajoso, enfrentou as duras imposições da vida com alegria e amor. Fez milhares de amigos fieis. Tinha um carisma que poucos tinham. Aos domingos, na casa da mamãe, chegava esfomeado, rindo, falando merda pra caralho, a gente ria aos montes. Depois beliscava os quitutes sem medo. Mas ele tinha um vício. Fumava muito. Adorava comidas calóricas e gordurentas que minha mãe ainda faz. Chamávamos ele de “gordinho”, não que ele fosse obeso, longe disso, mas pelo seu comportamento de ter um apetite voraz acabou ficando um pouco acima do peso.
Lembrei do dia mais icônico de nossas vidas, o dia 12 de junho de 1993, o dia da Paixão Palmeirense. Esse dia se tornou inesquecível pra mim, não pelo que significou esportivamente apenas, que foi maravilhoso, mas também pelas circunstâncias dos fatos. Meu pai, um “velho pomerense”, como ele mesmo se intitulava, ficou com dor de barriga (acho que ele inventou isso por me amar) e decidiu não ir àquela final contra o arquirrival e deu seu ingresso para mim. Eu não iria ao jogo por motivos de inseguranças e por ser um bunda mole. Graças a Deus eu fui com eles. Naquele dia, depois do gol do Zinho, tive a oportunidade de abraçar meus irmãos como nunca os havia abraçado. Rolamos juntos bancada abaixo. Choramos juntos. Beijei meu irmão caçula. Eu tinha brigado com eles no passado. Sempre os amei e nunca quis que sofressem. Eu tinha sido um tolo. Naquele dia pude abraçar meus irmãos caçulas e no meu coração sentir o calor do que é de fato amar alguém de verdade.
Anos mais tarde, tocamos juntos pela última vez em um bar de São Caetano do Sul. Lembrei da música “Comfortably Numb” do Pink Floyd. Aquela performance foi única. Eu nos teclados ele na guitarra…aquele solo idêntico ao original. Estávamos no céu. Mas quis o destino que fosse assim. Ele se profissionalizou na música e eu como engenheiro. Ele seguiu sua carreia com o Mauricio se tornado um produtor de alto gabarito. Depois disso, tudo deu certo pra ele. Casou e tinha um sonho de constituir família e ter filhos, muitos filhos, como todo bom homem quer fazer.
Lembrei que em janeiro daquele ano fatídico, ele teve um desmaio em Nova York enquanto fazia mixagens do último álbum. – Nada sério – ele me disse. Quando encontrei com ele na casa da mamãe eu insisti que procurasse um médico. Disse a ele que o papai havia morrido de repente justamente por não observar seus problemas congênitos com o coração. – Você promete que vai procurar um médico? Pedi a ele gentilmente. – Pare com essa vida louca. Faça exercícios, se alimente melhor e pare de fumar seu cuzão. Ele riu gostosamente e disse que seguiria meu conselho.
Lembrei que ele era muito ansioso, apesar do sorriso aberto e franco. Queria cuidar da família dele. Queria ter filhos e a carreira dele era incerta. Não adiantava eu e o Mauricio dizer a ele que tudo se resolveria no tempo de Deus. Acho que ele se tocou e procurou um médico. A sugestão do médico foi a mesma que demos. Ele começou a jogar tênis. Perguntei se havia feitos os exames antes e ele respondeu: – Relaxa irmão, estou correndo atrás disso. Eu, mais uma vez tolo, confiei.
Quando sai daqueles devaneios e voltei à vida real vi o Mauricio vindo desnorteado e completamente desolado segurando nos braços da minha mãe. Naquele momento senti a maior tristeza deste mundo. O que seria dele, do seu trabalho, das nossas vidas e da nossa família? Minhas mãos estavam totalmente molhadas com as lágrimas vertidas. Meu coração estava estraçalhado. Minha esposa recebeu a nobre missão de levar as roupas e deixar na sala onde ele estava deitado, inerte. Era uma camisa branca e uma verde do Palmeiras. Eu tomei a verde e fiquei com ela. Nele vestiram a branca, linda. Lembrei de vê-lo a vestindo com orgulho e com o peito estufado. Minha esposa calmamente me disse que ele estava sereno, tranquilo e esboçava uma paz daquelas que sentimos quando cumprimos uma missão.
Meu irmão Maurício pensou em desistir de tudo. Mas o amor de Deus para com seus filhos é infinito. Em toda Sua misericórdia nos deu a pior dor no dia de Nossa Senhora Aparecida para que em Seu colo maternal nos deitássemos, levou o gordinho no dia das crianças para que nos lembrássemos de suas criancices saudáveis e para que Seus desígnios pudessem ser cumpridos. Assim, seguimos com nossas vidas apesar da dor. Fizemos nossas famílias, e nossa fé em Deus se aprofundou. Deixei minhas tolices e meus erros para trás às duras penas, e com uma dor imensa carregamos nossas cruzes. Minha fé que havia se esvanecido há décadas, foi voltando aos poucos. Depois disso tudo, descobrimos que temos um problema cardíaco congênito familiar e isso de certa forma salvou a vida do Mauricio em um episódio mais recente dessa história. Deus salvou a vida dele e de nossa família novamente. Deus queria que superássemos a dor, queria a nossa vitória e a nossa salvação, queria a nossa fé. E a vontade Dele se cumpriu na terra e no céu.
É uma história triste, mas com final feliz. Todos sabem como estamos hoje em nossas vidas. Estamos lutando pela felicidade e dando a todos essa mensagem de fé e amor. Todos sabem como meu irmão Mauricio está hoje, basta olhar e vocês verão essa verdade. Eu, minha irmã, meu irmão e minha mãezinha estamos vivos e distribuindo esse amor nos trabalhos que escolhemos seguir. Estamos salvos pelo poder de Deus e sabemos que, pelas graças do Senhor, estaremos juntos para sempre no amor de Cristo. Tenham fé, vamos vencer a morte e o mal.
César Manieri (58), é engenheiro, músico, empresário, professor e especialista em educação matemática, diretor da Escola Integro. Escreve em seu blog “Na metade do Caminho” e é autor de textos e pensamentos sobre conservadorismo, religião, política, educação e auto conhecimento.